Royce: O Primeiro Gracie a Lutar no Octógono, o Que Mudou o Curso da História das Artes Marciais no Mundo
Por Carlos Eduardo Nogueira Loddo
Quem é o Melhor Gracie?
Muito se discute sobre quem é o melhor lutador dos Gracie.
Os cinco irmãos originais?
Carlos Gracie, o líder e Patriarca e criador do conceito de uma família de lutadores dedicando a vida ao jiu-jitsu como estilo-de-vida, e os irmãos que começaram com ele, Oswaldo e Gastão?
O primeiro grande lutador, George Gato-Ruivo Gracie, que, com sua vida nômade, inspirou o desenvolvimento do jiu-jitsu e do vale-tudo em todo o Brasil?
Ou o extraordinário caçula Hélio Gracie, que fez as lutas mais épicas com os maiores adversários, dedicando toda a sua longa vida a formatar com seu incomparável primor técnico, o jiu-jitsu de toda a Dinastia subsequente?
Carlson Gracie
Aquele que subiu garoto aos ringues dos anos 1950, o primeiro da segunda geração?
Carlson Gracie, que passou por todas as provas de fogo, para manter a honra e o cartel da Família, tonando-se para muitos o maior treinador de jiu-jitsu e de vale-tudo, para novas gerações, incluindo o maior número de campeões fora da família?
Rolls Gracie
O líder de vida mais curta, porém mais intensa?
Rolls Gracie, o maior referencial nos anos 1970, líder que manteve a unidade da Família, estabelecendo o mais alto padrão de vitórias em competição e em treinos, dialogando tecnicamente com (e treinando e vencendo em) todas as artes marciais de sua época (judô, wrestling, sambo, boxe e karatê), sem perder de vista a essência técnica e a centralidade do jiu-jitsu?
Rickson Gracie
O grande campeão que, já campeão nos anos 1970 e sempre, desde os anos 1980, trouxe a Família Gracie de volta ao centro dos ringues de vale-tudo?
Rickson Gracie, filho tecnicamente perfeito de Hélio que viria, ainda nos anos 1990 e 2000, ser conhecido no Japão como “Samurai”, tendo sido a figura mais importante da retorno do interesse do público japonês pelo tipo de jiu-jitsu introduzido no Brasil um século antes, por Mitsuyo Maeda, o famoso “Conde Koma”, que o transmitiu à Família Gracie?
Rorion Gracie
O líder da introdução de maior sucesso do Brazilian Jiu-Jitsu nos EUA, Rorion Gracie, primogênito de Hélio, que lançou o UFC, em 1993?
Em que pese a importância destes, a Família Gracie é tão extensa e extraordinária, que ainda haveria lugar para mais e mais nomes.
Tudo isso torna, no mínimo, a tarefa de determinar “o melhor Gracie” um desafio, e um objeto de perenes discussões, talvez insolúveis, pois cada um dos maiores Gracie poderia ser considerado “o maior de todos”, dependendo do critério a ser aplicado..
Royce Gracie
Onde não há possibilidade de discussão, por outro lado, é quanto o seguinte fato: não fôssem as assombrosas vitórias de Royce Gracie nos primeiros UFC’s, entre 1993 e 1994, o mundo não conheceria como hoje conhece jiu-jitsu e o vale-tudo brasileiros; este último, desde então, reconfigurado como “MMA”, o esporte de crescimento mais intenso desde então no cenário mundial.
Royce Gracie nasceu no Rio de Janeiro, próximo ao Natal, 12 de dezembro de 1966, tendo sido o quarto dos filhos homens de Hélio Gracie.
Nos anos 1970, já se tem registros de Royce treinando com os notáveis da Família Gracie, tempos em que fazia parte da rotina da notável família: nutrir-se cuidadosamente, seguir a rotina de treinos nas academias e na famosa casa de Teresópolis, tendo também as suas experiências nas competições infantis.
Dia típico de treinos entre os Gracie, nos anos 1970. De pé (e-d): Rickson, Rolls, Carlos, Hélio, Robson e Maurício Gomes (que se casaria com Reila Gracie, e seria pai de Roger). Ajoelhados (e-d): Royler, Carlinhos, Crolin, Rórion, Rocian e Royce.
Seu irmão mais velho, Rórion, depois de uma passagem pelos EUA nos anos 1960, volta para lá em 1978, mais especificamente para Los Angeles, disposto a introduzir para valer o jiu-jitsu praticado pela Família Gracie no Brasil.
Entre aulas na garagem de sua casa em Redondo Beach e desafios locais, Rórion começou a acontecer naquele cenário.
No início dos anos 1960, João Alberto Barreto e Flávio Behring já tinham começado a dar aulas de jiu-jitsu pelos Estados Unidos, sobreudo em quartéis, para forças especiais, mas embora tivessem convites para ficar, não se fixaram.
Nos anos 1960, Rolls Gracie ia regularmente com a mãe, Cláudia, que era comissária de bordo, e em fins daquela década, Rórion fizera primeira viagem, mas não se fixou.
Em 1972, Carley Gracie fixou-se nos EUA e começou a ensinar. Em fins dos anos 1970, liderados por Rolls, e acompanhados por Hélio, alguns Gracie chegaram a ir aos EUA para participar de competições de sambo, a convite do wrestler Bob Anderson.
Entretanto, foi a introdução de Rórion, desde 1978, a que teria, de longe, o maior impacto.
Nos anos 1980, Rorion foi levando irmãos e primos para os EUA, dentre eles,o Royce, que que chegou aos EUA em 1984, com 17 anos, para ajudar Rórion, com as suas aulas, na garagem.
Por volta de 1988: Rorion Gracie já trazia boa parte da família para ensinar nos EUA:(e-d): Rocian, Royce, Rickson, Rorion, Renzo, Rilion Gracie e o primo Carlos Machado.
O início do ULTIMATE FIGHTING CHAMPIONSHIPS (UFC)
Em 1993, Rorion Gracie, em sociedade com seu aluno e homem-de-mídia Art Davie, lança o The Ultimate Fighting Championships (UFC) 1, que foi uma introdução de formato do “vale-tudo” praticado no Brasil então há quase um século, que iria ser reconfigurado em uma nova arte globalizada (mais tarde, chamada de “MMA”, ou mixed-martial-arts).
Davie costuma comentar que houve dificuldades para lançar um desafio daquele tipo, na mídia americana, e a pergunta que todos fazia era “Isso é permitido pela Lei?” Acabaram lançando o primeiro evento em Denver, Colorado, que foi onde puderam, em 12 de novembro.
Uma pergunta sempre dirigida a Rorion Gracie é o porquê de, contando com lutadores Gracie bem mais tarimbados, testados e aprovados tanto em jiu-jitsu esportivo, quanto em vale-tudo, como o campeoníssimo Rickson Gracie e o duríssimo Relson Gracie, preferiu colocar em cena o Royce.
A resposta que costuma dar nas entrevistas é que teria feito isso para causar maior impacto, pois Royce era bem mais franzino e mais novo que os irmãos, o que ajudaria a convencer melhor o público, em vitórias contra adversários muito maiores e mais pesados, sobre o ponto principal dos Gracie para desafios desse tipo: a questão da provar a superioridade do jiu-jitsu, em lutas deste tipo.
Muitos consideram que Rorion correu grande risco de dar aquele primeiro passo, colocando logo tudo a perder.
Além de serem competições com regras bastante duras (pouco restritivas), tinham tempo ilimitado, não havia categorias de peso (a diferença de Royce para os demais às vezes chegava a 30 kg), e o mais incrível, que nunca acontecera nos eventos históricos no Brasil: um lutador precisaria fazer, para vencer, três lutas em uma noite!
Nas primeiras entrevistas, diante de um mundo assombrado com as suas vitórias, Royce declarou: “Nem sou o melhor da família. O meu irmão Rickson é o que vence a todos”, creditando o seu sucesso aos desenvolvimentos da arte, por conta da atuação de seu pai, como artífice.
Pouco importando todas as razões e ponderações envolvidas, o fato é que o jovem Royce Gracie cumpriu com a missão, vencendo com primor três ou quatro lutas de vale-tudo por noite, contra adversários bastante duros.
O jiu-jitsu da Família Gracie e do Brasil e o futuro MMA colheram os frutos da decisão de Rorion e do feito extraordinário de Royce.
O Brazilian jiu-jitsu foi colocado de vez no mapa mundial das artes marciais mais respeitadas, procuradas e praticadas, e o caminho estava aberto para a consolidação do MMA como esporte profissional.
O #1 UFC – Vitória impressionante de Royce Gracie
Logo no UFC-1, Royce venceu Art Jimmerson (boxe), aos 02:18, quando este bateu, da montada, numa luta relativamente fácil.
A luta mais dura seria com certeza contra Ken Shamrock, wrestler americano que fazia lutas profissionais no duro circuito japonês. Foi um embate típico de jiu-jitsu contra catch-wrestling, que se passou em 57 segundos, tudo valendo ser lembrado…
Assim que Shamrock entrou no double-leg, Royce o colocou na guarda, mas Shamrock logo puxou-o para uma chave-de-perna, no que Royce impediu o fechamento das pernas e foi junto, já montando.
Shamrock tentou evitar a montada dando as costas, e Royce rapidamente finalizou com um mata-leão, portanto, não fazendo mais que seguir algoritmo básico do Bjj.
Na final, Royce enfrentou o lutador holandês de Savate Gerard Gordeau, finalizando-o com mata-leão pelas costas aos 1:44.
Cartaz do UFC-1 (depois, rebatizado “UFC-1, The Beginning”,e cenas de duas das vitórias de Royce Gracie na noite: contra Ken Shamrock (wrestling) e Gerard Gordeau (savate).
O #2 UFC – Royce Gracie é novamente campeão
No UFC-2 (em 11 de março de 1994), contra um público ainda confuso e cético, sobre a facilidade com que venceu o primeiro, Royce precisava consolidar o resultado. Então, num impressionante torneio de dezesseis lutadores, mais uma vez, Royce finaliza todos, só que, dessa vez, em quatro lutas:
- Minoki Ichihara (karatê), em 5:08 (estrangulamento de lapela);
- Jason DeLucia (Shaolin Quan), em 01:07 (armlock, da guarda);
- Remco Pardoel (jiu-jitsu europeu), em 01:13 (estrangulamento de gola, por trás);
- Patrick Smith (taekwondo), em 01:17 (desistência, a partir de socos, da montada).
As quatro vitórias em vale-tudo (UFC-2) de Royce Gracie em uma noite: Ichihara, Delucia, Pardoel e Smith.
O #3 UFC – Royce Gracie contundido
No UFC-3 (09 de setembro de 1994), um susto para a Família Gracie…
O fortíssimo e folclórico lutador Kimo Leopoldo, que se apresentou como lutador de taekwondo (coisa que também era, mas tinha experiência no jiu-jitsu dos Gracie com o irmão de Royce, Relson, no Havaí) deu muito trabalho para ser vencido.
Embora Royce tenha conseguido vencê-lo, teve de puxar-lhe uma trança longa que usava, e o pior, saiu contundido demais, para continuar no torneio.
Cenas da batalha de Royce Gracie com Kimo Leopoldo: vencida, mas saindo contundido demais, para continuar a lutar no evento.
O #4 UFC – Royce Gracie é novamente campeão
No UFC-4 (16 de dezembro de 1994), então, muitos supunham que Royce e o jiu-jitsu Gracie já estariam superados, inclusive, por conta de muitos bons lutadores de grappling (luta agarrada) estarem entrando, e porque outros estavam mais adaptados para lutar contra a luta agarrada.
Um Royce mais forte e mais bem preparado, pronto para superar toda aquela pressão, apareceu e venceu, consolidando assim tudo o que os Gracie queriam mostrar.
Venceu Ron Van Clief (karatê Goju-Ryu) em 03:59 (mata-leão), Keith-Hackney (kenpo-karate) em 05:32 (armlock), e fez uma luta extraordinária de 15:49, contra o wrestler Dan Severn, quando poucos acreditavam na possibilidade de vitória, estrangulando-o com um triângulo (da guarda).
UFC 4: Conclusão da trilogia histórica das vitórias surpreendentes de Royce Gracie no UFC
O presente texto poderia parar por aqui, pois foi nessa trilogia de quatro impecáveis UFC’s vencendo de três a quatro oponentes muito maiores e mais pesados por noite, quase sempre com facilidade, e quando não, por viradas surpreendente, que Royce Gracie tornou-se o maior responsável pela difusão internacional do jiu-jitsu da Família Gracie, e também, do vale-tudo praticado no Brasil, precursor do atual MMA.
Outras lutas de Royce Gracie
Vamos só mencionar, ilustrativamente, mais algumas outras lutas suas, no cenário que se seguiu.
De um modo geral, foram muito mais difíceis, pois já havia um respeito muito maior e uma preparação focada em vencer as estratégias e técnicas do jiu-jitsu dos Gracie ou Bjj.
Na perspectiva dos oponentes dos Gracie, tudo o que faltava aos outros era “treinar grappling” (luta agarrada) para vencer os Gracie.
Os Gracie e seus fãs preferem considerar que o que tornou as coisas mais complicadas foi que os oponentes passaram a treinar, mais especificamente o Bjj.
De um modo ou de outro, é bastante consensual, hoje, que o sucesso no MMA depende de ampla experiência em artes marciais, porém, parece ser um axioma, que o jiu-jitsu Gracie ou brasileiro deve fazer parte, necessariamente, da preparação.
Gracie vs.: Ken Shamrock (luta casada no UFC-5, em 1995): empate; Kazushi Sakuraba (derrota por desistência, após 90 minutos de luta, 1a luta de ambos); Hidehiko Yoshida (segunda luta, em 2003), empate; Taro Akebono (2004, vitória por finalização por omoplata).
A maioria das lutas de Royce Gracie foi contra adversários duríssimos, vencendo quase todas e, mesmo nas derrotas, mostrando ser um lutador completíssimo, e um fiel seguidor do sistema de seu pai, de modo até bastante ortodoxo.
Se ele foi, por todas as suas conquistas, o maior dos Gracies, isso seria algo difícil de responder, já que a história tem revelado diversos Gracie extraordinários e fundamentais.
Agora, certamente ele foi impecável na sua trilogia de vitórias até o UFC-4, e foram essas vitórias que colocaram os Gracie e o UFC/MMA no centro do mapa mundial das artes marciais.
Gracie com seus irmãos e seu pai, Hélio Gracie. Em pé (e-d): Royce, Rorion, Relson. Ajoelhados: Rocian e Royler. Ao centro, o ícone lendário, Grande-Mestre Hélio Gracie, reconhecido mundialmente, graças ao jiu-jitsu recebido por seu irmão Carlos do Conde Koma, graças à liderança de Carlos, graças aos seus próprios desenvolvimentos e liderança implacável, e graças ao trabalho impecável de seus filhos, sobrinhos e alunos, a partir do seu jiu-jitsu.